Não foi esta edição que li.
«Abancados à tosca mesa, cuja toalha tresandava ao fartum do azeite e bacalhau, apareceu a travessa fumegante com duas galinhas, sobre as quais se levantava uma pirâmide de três salpicões, assentes num grosso lardo de toucinho.
«D. Mécia enjoou daquele espetáculo e recuou a cadeira, furtando o nariz à fumaça das vitualhas vaporosas.
«Instou-a o pai a que aceitasse uma asa de galinha. A menina, porém, ansiada de náuseas, saiu da mesa [...].
«Entretanto, D. José de Noronha, espostejando e deglutindo com estridente mastigação uma galinha, tartamudeava:
«- Meus amigos, nada de engulhos! É comer o que aparece e fazer de conta que a barriga é alforge de pedinte. Eu bem sei que as galinhas são boas; tenho tão bom paladar como o grão-turco; mas nesta ocasião tenho fome como dez turcos em jejum de três semanas. Como destas galinhas se podia fazer boa petisqueira sei eu; e, se me lembra que a prima não comia isto assim, tinha ido eu à cozinha fazer-lhe uma galinha de alfitete. [...]
«E, aproveitando o curto descanso de bocado a bocado que lhe escorregava pelo esófago, D. José ia dizendo:
«- Coze-se uma galinha com um arrátel de toucinho, em pouca água para lhe não tirar o chorume; depois, derrete-se o toucinho; parte-se a ave em quartos e mete-se numa tigela a corar a lume brando; depois, pega-se em meio arrátel de açúcar, farinha, seis ovos, manteiga e um todo-nada de vinho, e de tudo isto fazem-se bolinhos, com sua folha de louro, fritam-se, põem-se em camadas de açúcar, cobrem-se de canela e por cima de tudo põe-se a galinha. Isto é petisco de morrer!... E galinha mourisca? já comeu, prima Mécia?
«- Não senhor.
«- Faz-se torresmos; vai-se a gente ao pingo; deita-o numa tigela, onde já está a galinha entalida ou meia assada; por cima despeja-se um golpe de vinho branco, pouquito vinagre e água um quase nada; depois, louro, cravo, pimenta, gemas de ovo, fatias por baixo e rodelas de limão por cima. É comer e gritar por mais!...
«- Com efeito! - exclamou Lopo. - Onde aprendeu o primo esses refinamentos de glutão?
- Estudei; comprei uma arte de cozinha de Domingos Rodrigues, cozinheiro da Casa Real, e não leio outro livro a não ser os de alveitaria.»
Camilo Castelo Branco - O santo da montanha. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, p. 26-28
Não vou experimentar estas receitas de galinha que, retiradas do livro de Domingos Rodrigues, não são para o nosso paladar atual.
7 comentários:
Um belíssimo texto, que já li há muito e mal me lembrava destas receitas...
Bom Domingo!
Como Mécia, onde elas entrassem eu saía:). Camilo Castelo Branco é único.
Bom domingo
Acho que eu também não vou experimentar esta receita.
Bom almoço e bom dia!
Nunca tinha lido este livro, mas gostei, como gosto sempre de Camilo.
Bom almoço para todos.
Nunca li este livro e também não vou experimentar esta receita...😉🐔
Bom almoço!
Também nunca li a obra, mas fiquei com vontade!
Ainda um dia destes vendi um exemplar.
Camilo sempre teve procura, mas nos dias de hoje, um pouco mais do que o normal.
Boa semana.
Ainda bem que há gente a ler Camilo. Talvez a celebração do bicentenário tenha ajudado.
Boa semana para as duas.
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