Morreu Claude Lanzmann, o homem de Shoah, o filme sobre o Holocausto, documentário monumental de dez horas, filmado durante 12 anos, ouvindo sobreviventes judeus em 14 países. Como lembrar o peso de tanto? Talvez numa versão que desça à infinita raiz do assunto, o homem - um homem. Talvez falando de Lanzmann, não este, impossível de se falar dele sem a sombra do monumento. Falando, então, do irmão de Claude Lanzmann, Jacques, que morreu em 2006.
Os Lanzmann descendem de uma daquelas periódicas viagens dos homens pela Terra, igual, com outros homens, às que os jornais contam hoje. A dos avós dos Lanzmann começou no fim do século XIX, eram judeus do Leste Europeu e fizeram-se franceses. Tanto, que quase a meio do século seguinte já, Claude e Jacques, os netos dos emigrantes iniciais, eram patriotas da Resistência francesa. E na hora da morte, num novo século, ambos deixaram obras maiores e menores. Se do agora desaparecido impõem-se Shoah, em Jacques há muitas letras de belas canções francesas, alguns romances e, sobretudo Le Rat d'Amérique (O Rato da América), uma quase autobiografia romanceada.
Finda a II Guerra Mundial, Jacques Lanzmann foi para a América do Sul. «Se queres encontrar-te, começa por te perder», escreveu. Partir porque uma ilusão nos acicata ou, mais frequentemente, a desesperança nos empurra. Partir. O falso romance (Lanzmann apresenta-se como o judeu francês «Georges Fridmann», ex-combatente da Resistência) conta a perda e a procura. Ele andou pelo Paraguai, pela Argentina e pelo Chile em esperança, como qualquer América sempre ilude; e andou pela perdição como tantas vezes qualquer América nos ensina.
A última aventura de Lanzmann/Fridmann é nas minas chilenas de nitrato de sódio, nas montanhas desérticas dos Andes. Minas entre as neves eternas, administradas como um campo de concentração e de onde só doidos tentam escapar pelo teleférico dos cadáveres... O documentário Shoa é de 1985, a realidade inventada em Le Rat d'Amérique é anterior, de 1956, e ambos falam da irrealidade inominável do horror nazi na primeira meia década de 1940. E se, afinal, os dois irmãos, Claude e Jacques Lanzmann, nos contaram só a banalidade do homem?
Ferreira Fernandes
DN, 6 jul. 2018
Jacques Lanzmann escreveu numerosas letras para canções de Jacques Dutronc. São dele Il est cinq heures e Paris s'éveille.
4 comentários:
Não os conhecia. Mas estou com Ferreira Fernandes, contaram e deram a cantar a banalidade do homem. Já foi muito.
«A banalidade do mal».
Tenho as memórias de Jacques Lanzmann há anos num monte. Vamos a ver se é este Verão que as leio.
Bom dia!
Para quem desejar ver o filme, informo que ele está disponível na net.
Bom dia!
Agradeço a informação.
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