«Eu tinha sido criado, desde miúdo, entre os barcos e as redes, durante dois ou três meses cada Verão. Para mim, aquilo era um mundo maior que o mundo das cidades, com aqueles homens ruivos, roucos, gigantescos, que pegavam naqueles rolos de madeira e naqueles remos pesadíssimos como se nada fosse... gritando juras, insultos, numa cantilena sem fim.
«A miséria era medonha, com as crianças raquíticas, comidas pelas moscas e pelas pulgas, os pais encharcados de aguardente, mas eu não a queria ver. Eles, os do mar, eram os gigantes, nós, a gente do interior, os anões. Como as Campanhas estavam a acabar no início dos anos 60, eu sentia que era preciso fazer qualquer coisa para os salvar; ou,pelo menos, erguer um monumento à sua glória.
«[...] Claro que, na atmosfera neorrealista da época, as pessoas viram o filme como um protesto contra a fome e o trabalho pesado. Mas o que eu tinha sobretudo era admiração por aqueles homens que, sem terem onde copiar, tinham inventado uma complexa forma de trabalho coletivo - reunindo centenas deles e sem grandes meios materiais -, capaz de de lutar contra a fúria do mar numa costa sem defesa.
«[..] O mar andava a destruir as casas [...] Como eu era da terra [praia do Furadouro], muita gente ajudou, e o filme pode ser feito com muito pouco dinheiro.
«[...] a câmara era uma velha Arriflex, velhíssima, toda desconjuntada, cujo motor mudava de velocidade a meio de cada plano, e que estava sempre a riscar o negativo.O susto era tal que eu olhava mais para o contador de imagens por segundo do que para os atores, durante as filmagens.»
Paulo Rocha, in
João Semana, Ovar, 15 abr. 1991