Prosimetron

Prosimetron

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

20 de Outubro de 1996 - Londres

«Felizmente o meu regresso definitivo a Londres, depois de cerca de 30 anos na América. Sinto-me felicíssimo. [...] Eu tinha toneladas de malas - paguei quatrocentos e tal dólares, em Boston, de excesso de bagagem. [...] Havia de tudo: livros, manuscritos, copiosa correspondência, milhõse de fotografias, livros meus inéditos, so quatetos e quintetos completos de Mozart, vidros contemporâneos comprados em Veneza por uma tuta e meia - formas elegantíssimas, cores sublimes, sobretudo os azuis -, pequenas jarras, copos - recordações ad minha primeira visita a Veneza em 1970. (Estou agora a ouvir o disco de Bill Evans You must believe in Spring). No aeroporto de Boston descobri que não tinha à mão a chaves de toda aquela variegada bagagem. Tê-las-ia deixado no flat em Boston - não sei. A Kathi Aguero e o amrido, que me levaram ao aeroporto de Boston, vasculharam comigo a bagagem de mão e nada. O problema era se a Alfândega em Londres queria verificar segmentos daquele cortejo inverosímil. Ah, já me esquecia, entre as coisas que eu trazia encontrava-se uma pochade - emoldurada - da Sonia Delauney, desenhos, colagens, guaches dsete e daquele, incluindo onze obras do Eddie Arning. Felizmente, através do Nothing to declare havia apenas um oficial, não do Santo Ofício mas da Alfândega, a torturar uma criatura; nem sequer deu por mim. Miracolo, miracolo. Dei conco libras ao porteiro que colocou as milhentas coisas na carruagem indicada. E em Victoria como é que ia ser? Um indiano com bigodaças e olho luzidio levou aquilo tudo até à bicha dos táxis. E como é que ia ser depois - será que o chaffeur ascenderia até ao meu segundo andar? Ascendeu e depositou aquela babilónia no corredor, na sala e no quarto. Exausto, ofegante, o pobre homem - cheguei a assustar-me - "Portuguese professor kills taxi-driver" - sobreviveu e aceitou a sorte grande sob a forma de uma gorgeta. Estatelei-me na cama completamente arrasado - dormitei umas quatro horas - apanhei um táxi até ao Dino's em South Kensington - ovos, presunto, torrada, café - e eu cada vez mais em órbita. Londres - recuperada - até ao fim dos meus dias.»
Alberto de Lacerda
In: JL, Lisboa, 24 Ago. 2011, p. 32

Fundação Mário Soares, por favor publique o diário de Alberto de Lacerda!

1 comentário:

APS disse...

Associo-me, de alma e coração, ao seu apelo à Fundação Mário Soares.