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quinta-feira, 3 de maio de 2012

Um povo e o seu hino


A comunicação social alemã tem vindo a prestar alguma atenção ao 60º aniversário da versão actual do hino alemão. O uso e abuso do Lied der Deutschen (A canção dos alemães), também conhecido por Deutschlandlied, reflectem uma relação difícil e conturbada que o povo alemão viveu com este hino ao longo de praticamente dois séculos.
August Heinrich Hoffmann von Fallersleben escreveu a letra em 1841 na ilha de Helgoland, na época sob o domínio inglês. Poeta e professor de literatura, von Fallersleben concebeu o texto como canção de louvor à sua pátria e pretendia apenas manifestar o desejo de uma união dos 38 estados alemães que, ainda que oficialmente agrupados na Confederação Alemã (Germânica) desde o Congresso de Viena de 1815, detinham uma vasta autonomia política e económica. Von Fallersleben pronunciava-se a favor de uma junção desses territórios num país soberano, e, sobretudo, de uma constituição democrática e única, aplicável a todos os alemães. Neste contexto, deve ser entendido o início da primeira estrofe: Deutschland, Deutschland über alles, über alles in der Welt. (Alemanha, Alemanha acima de tudo, acima de tudo no mundo). O autor projectava a possibilidade de uma unificação bem sucedida, e não uma expansão ou supremacia agressivas de um país fortalecido. Tal interpretação distorcida caberia ao regime nazi cem anos mais tarde…
A defesa desses ideais, evidente noutras obras, resultou em várias detenções e expulsões de von Fallersleben que partilhou assim o destino de muitos combatentes contemporâneos em prol de um movimento democrático que culminaria nos acontecimentos e nas revoltas de 1848 (nesse ano, von Fallersleben viria a ser reabilitado).
Voltando ao Lied der Deutschen: von Fallersleben consentiu que o seu editor de Hamburgo, Campen, adaptasse as três estrofes ao Quarteto do Imperador, opus 76 nº 3, de Joseph Haydn, e que publicasse a obra a 1 de Setembro de 1841.


A unificação chegaria mais tarde, com o nascimento do Deutsches Reich em Versalhes em 1871. Guilherme I e Bismarck ignoraram a versão de von Fallersleben para a escolha de um novo hino nacional. Apenas a 11 de Agosto de 1922, em plena República de Weimar, decidiu Friedrich Ebert proclamar o Deutschlandlied como hino oficial alemão. O Terceiro Reich encarregou-se de dar a conotação de superioridade e agressão germânicas, tão oposta à intenção do autor da letra.
Após a derrota da Alemanha em 1945, os Aliados proibiram inicialmente o uso do Deutschlandlied. A nova República Federal Alemã de 1949 necessitava, no entanto, de um hino, em particular, para actos ou acontecimentos internacionais desportivos em que a nova nação se fazia representar. Na troca de correspondência de 2 de Maio de 1952, entre Konrad Adenauer, primeiro chanceler da RFA, e Theodor Heuss, primeiro Presidente, optou-se pela terceira estrofe do Deutschlandlied como novo hino alemão que, desde a reunificação de 1990, representa musicalmente toda a Alemanha.

Einigkeit und Recht und Freiheit für das deutsche Vaterland – unidade e justiça e liberdade à pátria alemã , assim começa esta estrofe. Afinal, o espírito liberal de von Fallersleben sobreviveu às convulsões de uma história complexa.

Imagens: Hoffmann von Fallersleben, Joseph Hayn, Adenauer/Heuss

3 comentários:

ana disse...

Filipe,
Muito interessante!:)

hmj disse...

FVN fez bem, tal como o DIE ZEIT, explicar o enquadramento do hino da Alemanha que muitos ignoram. A história conturbada do hino devia e, de facto, fez recordar, a espíritos esclarecidos da Alemanha, a sua responsabilidade por uma Europa de paz.
Apesar de concordar com a opção pela 3ª estrofe, apenas, do poema de von Fallersleben, prefiro escutar a adaptação musical com base numa obra de Haydn.
A letra da hino actual não apaga a recordação do nazismo, cujo fantasma se continua a alimentar de uma sobranceria recente.

Filipe Vieira Nicolau disse...

Cara HMJ, como diz e bem, a letra do hino actual não apaga a recordação do nazismo. Ao ver uma peça nos Tagesthemen de ontem (foi assim que soube da efeméride), fiquei estupefacto quando uma senhora de idade muito naturalmente começou a cantarolar, numa zona de peões algures na Alemanha, Deutschland, Deutschland..., quando interrogada sobre a letra do hino actual. Já três jovens "acertaram". Enfim, von Fallersleben merecia mais! Importa um confronto bem orientado com o nazismo no ensino escolar para evitar novos fantasmas.