Prosimetron

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quarta-feira, 23 de maio de 2018

Leituras no Metro - 976

Lisboa: Livros do Brasil, 1956

«Li o Fahrenheit 451 – o n.º 33 [da coleção Argonauta] – depois de ter lido O Mundo Marciano (tradução das Martian Chronicles) e O Homem Ilustrado, duas colectâneas de contos de Bradbury. Devo-o ter lido no Verão de 1958, dois anos depois de ter saído em Portugal. Nesse tempo, as minhas leituras tinham passado da colecção Salgari, com Sandokan, o Tigre da Malásia, para a colecção De Capa e Espada das Edições Romano Torres, onde me ia familiarizando com Ponson du Terrail (Os Quatro Cavaleiros da Noite, Um Trono por Amor, O Pagem do Rei, As Luvas Envenenadas) e com Paul Féval, criador do Lagardère. Também já tinha lido, nas mesmas edições Romano Torres, o Walter Scott em português.
«Fahrenheit 451 era já um romance, uma coisa mais séria, uma história completa; a história de uma sociedade futura onde os livros tinham sido banidos e onde os bombeiros já não apagavam fogos – as casas eram de materiais não inflamáveis –, só queimavam livros. Fahrenheit 451 (233º Celsius) era a temperatura a que ardiam os livros.
«Para viciados na leitura, que continuam a gostar de ler e de ter livros – livros de todos os géneros, das novidades aos clássicos, livros com folhas, letras impressas, capas, encadernações, edições modernas e antigas (tenho algumas primeiras edições do Camilo Castelo Branco, compradas no Brasil) – esta destruição dos livros é equivalente a um apocalipse.
«Quando saiu nos Estados Unidos, em 1953, Fahrenheit 451 foi lido como um manifesto contra a censura, como um panfleto contra todas as inquisições. Estaline tinha morrido nesse ano, a memória de Hitler ainda estava bem viva e o macartismo tomava a América de assalto.
«Hoje percebemos melhor o seu significado mais fundo, ou percebemos o livro à distância, de maneira diferente, e talvez mais interessante civilizacionalmente. Até porque é na nossa distância que as sombras de Fahrenheit 451 parecem incidir com maior crueza, como se vivêssemos agora o futuro adivinhado no livro. O próprio Bradbury insistia que o livro não era “uma resposta ao senador Joseph McCarthy” nem era sobre a “censura estatal”, mas sobre o modo como a televisão estava a destruir “o nosso interesse pela leitura e pela literatura” e a “transformar as pessoas em imbecis” (“It is about people being turned into morons by TV”).
«Assim, em Fahrenheit 451, queimam-se livros porque os livros são perigosos e levam a pensar e a julgar criticamente, encerrando um passado que pode denunciar, empalidecer ou pôr em causa o presente e sugerir outro futuro. No livro, os que deixaram de ler livros – como a vaporosa Mildred, mulher do protagonista – estão alienados pela televisão e por uma espécie de redes sociais tridimensionais que lhes fornecem famílias fictícias e lhes preenchem o dia-a-dia como companhias virtuais. […]
«Ao entrar hoje no mundo das redes sociais e ao assistir de relance a alguns shows populares de duvidosa ética e estética, percebemos que a visão de Bradbury transcende o piedoso e sempre correto comentário anticensura para penetrar incisivamente no coração do futuro – o nosso presente.»


Gostei bastante do texto de Jaime Nogueira Pinto a propósito de Fahrenheit 451 e que poderão ler na totalidade na revista Bang! (Lisboa, maio 2018, p. 82-84) e que me parece ser o prefácio a uma nova edição deste romance na Saída de Emergência. Li quase todos os livros que ele refere, que eram leituras das pessoas da minha geração, sem esquecer os romances de Jane Austen, também editados pela Romano Torres.
Fahrenheit 451 foi o primeiro livro de ficção científica que li. Não li muitos mais - não é um género que eu aprecie, mas gostei bastante deste romance de Ray Bradbury e da adaptação ao cinema que dele fez François Truffaut. Li-o na edição, cuja capa acima reproduzo.

4 comentários:

Rui Luís Lima disse...

"Conheci" o livro de Bradbury através de François Truffaut, numa sessão no Jardim Cinema, teria cerca de nove anos e em casa ninguém me calava, porque eu estava fascinado com o que tinha acabado de ver e já nem me recordo qual era o livro que queria ser, mas que mundo estranho aquele, pensava eu na época e já em adulto li diversos artigos sobre o livro, mas a novela de Ray Bradbury, só a descobri depois de me ter casado com uma fan de ficção-cientifica, numa edição inglesa. Nos dias de hoje, quando vou nos transportes a ler um livro (em papel), sinto-me um estranho numa terra estranha:)
Muito boa tarde!

MR disse...

Ver o filme de Truffaut com nove anos!... Já não me lembro onde vi o filme, mas acho que não foi no Jardim Cinema («O Palhinhas»).
Também leio muito no Metro, mas vejo muita gente a ler livros (principalmente mulheres).
Bom dia!

PNLima disse...

Vi o filme e li o livro pouco depois. Ambos me deixaram profundamente perturbada com a perspectiva de um mundo sem livros e uma sociedade ligada à "caixa que mudou o mundo". Uma das situações perturbantes é saber-me um tudo ou nada de memória curta e incapaz de decorar um dos meus livros favoritos para o salvaguardar da destruição.
Bom fim de semana!

MR disse...

Agora, como nota o Jaime Nogueira Pinto, já são também as redes sociais...
Bem, ser-me-ia difícil poder salvar um único livro, mas acho que seria o Guerra e Paz, se pudesse ser um livro com vários volumes. Senão talvez O livro do desassossego. Não sei... Viver num mundo com um único livro é uma coisa impensável.
Bom fim de semana!