Estou a falar de, e para citar apenas alguns poetas, William Blake, Emily Dickinson, Paul Celan ou Herberto Helder. A única forma de os irmos entendendo é ler, ler, lê-los.
Hoje, quero abordar um poeta francês desta “família” que referi acima. Trata-se de René Char (1907-1988). E que afirmava: O poema casa sempre com alguém.
Sobre a criação poética, Char diz-nos: Em poesia acontece que, no momento da fusão dos contrários, surge um impacto sem origem definida cuja acção dissolvente e solitária provoca o deslizamento de abismos que trazem, de forma tão anti-física, o poema. Cabe ao poeta cortar cerce este perigo, fazendo intervir, ou um elemento tradicional de experiência feito, ou o fogo de uma demiurgia tão miraculosa que anule, por si, o trajecto que vai da causa ao efeito.
Passemos à prática ou a uma tentativa concreta de descodificação. Por exemplo, o poema de R. Char:
3 de Setembro 1939
O verdilhão entrou na capital pela madrugada.
A espada do seu canto calou o leito triste.
O sempre para nunca mais teve o seu fim.
São de Char, noutra altura, estas palavras: “O poeta está na génese dum ser que projecta e dum ser que retém. À amante ele empresta o vazio, à bem amada, a luz. Este par formal, esta dupla sentinela dão-lhe, comovidamente, a sua voz.”
É importante reter, como ponto de referência, alguma geografia dos seus afectos: os filósofos pré-socráticos (Heráclito, principalmente), a assimetria, Sade, Rimbaud, e alguns pintores – Georges de La Tour, Braque, Picasso, Vieira da Silva, entre outros. A tensão da incompletude ou a força dos contrários que não é, em René Char, incoerência, mas impulso e energia criadora:
que se eterniza em desejo.
Georges Braque, To René Char, (1958)
Outro exemplo dessa demiurgia criadora, transfigurada no poema, é visível nos versos em que aborda a morte da avó, outra das suas figuras afectivas tutelares:
O anjo das mutilações tinha batido à persiana
com a sua asa muda e enorme.
Na lareira as achas de madeira estremeceram
e não mais se reduziram a cinzas.
René Char teve também uma actividade cívica importante, tendo sido um elemento destacado da Resistência Francesa durante a II Grande Guerra. O poema que se transcreve, abaixo, do início do post-guerra (MATINAUX,1950) é, provavelmente, uma espécie de hino à liberdade da França. Importa dizer que traduzir, como fiz, poetas desta “família” é tarefa condenada à imperfeição.
QUE ELE VIVA
Este país não é senão uma intenção do espírito, um anti-túmulo.
No meu país, as tenras evidências da primavera e os pássaros
desprotegidos são preferidos aos fins incertos.
A verdade espera pela aurora ao lado de uma tocha.
Desprezamos o vidro das janelas.
Que interessa apenas ao curioso.
No meu país não se questiona um homem comovido.
Não há sombras maléficas sobre a nau submersa.
Dizer apenas bom dia, não se faz no meu país.
Só se empresta aquilo que regressa acrescido.
Há folhas, muitas folhas nas árvores do meu país. Mas
os ramos são livres para darem, ou não, frutos.
Não acreditamos na boa fé do vencedor.
No meu país, agradecemos.
Post de Alberto Soares
7 comentários:
«No meu pais, agradecemos.»
Como Char diz no seu belo poema,escolho o mesmo que MR:
"No meu país agradecemos"
Tive que voltar para lhe dizer que é um belíssimo post.
O conjunto estético que criou não só com as palavras mas também com o Braque. A ligação com o ambiente histórico e a filosofia maravilhou-me.
Graças!
Ana
Se calhar é altura de renovar um certo convite...
Para LB:
O visado passou no exame de
4ªclasse,mas não se sente ainda à vontade para assumir a sua alforria
sem a veterana tutela.
Mas agradece.
Alberto Soares
Modéstias!
Obrigada por este post maravilhoso sobre René Char. Não conhecia este Braque.
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