Prosimetron

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terça-feira, 5 de outubro de 2010

O centenário de Fifi Antunes

Moisés deitou-se no chão julgando que o seu último momento chegava; ao fim de poucos minutos apalpou-se todo e como encontrasse o esqueleto intacto e devidamente coberto, encetou a mãos e pés, o regresso a casa... Para completar o disfarce, ia de vez enquando lançando ao ar um miau plangente... E cerca da uma hora da madrugada voltava a esquina da rua, erguia-se e corria a bom correr para a porta de casa... Nem acreditava que chegasse são e salvo de tão arrojada aventura.
Mas realmente não chegava a tempo.
A senhora Júlia com o mesmo sorriso com que lhe apresentava todos os meses o recibo do senhorio, logo à entrada depunha-lhe nos braços uma espécie de cabritinho esfolado que esperneava e vagia numa encantadora promessa de noites em branco.
- É rapaz ou rapariga?
- Menina... e há-de ter coragem como o pai - disse a senhora Júlia na mira de outros dez tostões.
- E então a senhora? Como está ela? - e referia-se ao génio da Ludovina, antevendo a descompostura que ia levar pela demora.
- Esta a descansar... Não se apoquente. Estava eu cá... Porteira ou parteira é quase a mesma coisa.


[....]

-Vencemos! A República proclamou-se! Raiou finalmente a Aurora da Democracia... Sua filha, se o senhor é patriota, deve chamar-se Aurora, em homenagem a esta memorável data...
- É verdade - reflectia o Moisés. - A minha família parece destinada a grandes coisas. Eu nasci a 24 de Julho, e tenho uma filha a 5 de Outubro! Já é ser histórico!

Desenho de Alberto Sousa, A Capital, 7-Outubro-1910

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As postagens sobre o quotidiano de 1910, que venho publicando desde o dia 3 de Outubro, destinavam-se a celebrar este centenário. Para quem pensou que era o da Revolução... as minhas desculpas. É que muitas outras coisas aconteceram há cem anos... E uma delas foi o nascimento da Fifi, alcunha de Francisca, em honra de Francesca de Rimini, que ocorreu na Aurora do dia 5 de Outubro de 1910 e por isso esteve quase a chamar-se Aurora.


A família Antunes é uma criação de Gervásio Lobato, na sua comédia Lisboa em camisa (1880).
Foi recriada por Armando Ferreira, em 1934, na sua comédia Lisboa sem camisa.
Moisés Antunes, ou melhor, Moisés Martim Antunes (porque o Moisés ainda é um Martim) foi obrigado a casar com a criada lá de casa (que nem sabia ler nem escrever...) de nome Ludovina.
O casamento foi chorado mas, como disse o Tristão, bem informado da civilização e do progresso: «Os tempos hoje são outros... todos os dias no jornal tenho lido exemplos de fidalgos que casam com plebeias».

A comédia de Armando Ferreira é editada pela «Livraria Editora Guimarães» que ainda hoje tem a sua sede na R. da Misericórdia, n.os 68-70, em Lisboa. Todos os extractos saíram do vol. I: O casamento da Fifi Antunes.

5 comentários:

MR disse...

:-)))))))))))
As voltas que o mundo dá. E também a Livraria Guimarães. :_))))

APS disse...

Como eu costumo citar o provérbio, aqui vai: "No melhor pano cai a nódoa."

Miss Tolstoi disse...

Estava a ver que havia aqui um gato escondido... mas Fifi Antunes. De mestre.
Nunca li, mas parece divertido.
E já agora, quando morreu a Fifi Antunes?

LUIS BARATA disse...

Adorei o miau como disfarce, que aliás nos divertiu a todos aqui ao pequeno-almoço pois que li esta passagem em voz alta. Tal como também adorei o porteira/parteira.

Miss Tolstoi disse...

Que engodo! :-)))
VIVA A FIFI ANTUNES!
VIVA A REPÚBLICA!

P.S.
"- Mandou-me chamar?
- Passe, cidadão!"