Prosimetron

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quarta-feira, 12 de maio de 2010

Miguel Torga, um homem que amava a província!

Para JAD, com o meu sorriso e à procura de paz e não guerra. Dedico-lhe este post para mostrar que não estou aborrecida. Retirei daqui porque não encontro o livro em minha casa. :)
Viva o combate salutar no qual se aprende, abaixo tudo o que leva à morte da sabedoria!
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Coimbra, 16 de Junho de 1947 – Sobretudo, não desesperar. Não cair no ódio, nem na renúncia. Ser homem no meio de carneiros, ter lógica no meio de sofismas, amar o povo no meio da retórica.


Coimbra, 5 de Abril de 1948 – Creio que não é preciso. Em todo o caso, fica aqui a declaração.
O que eu fui sempre, o que eu sou, e o que serei, é um artista, um homem e um revolucionário. Na medida em que sou artista, quero um mundo onde a beleza seja o vértice da pirâmide. Na medida em que sou homem, quero que nesse mundo os indivíduos sejam livres e conscientes. E na medida em que sou revolucionário, quero que a revolução traga à tona as grandes massas, e que nunca acabe de percorrer o seu caminho perpétuo, sem estratificações e sem dogmas.

Gerês, 17 de Agosto de 1958 – Sou, na verdade, um geófago insaciável, necessitado diariamente de alguns quilómetros de nutrição. Devoro planícies como se engolisse bolachas de água e sal, e atiro-me às serranias como à broa da infância. É fisiológico, isto. Comer terra é uma prática velha do homem. Antes que ela o mastigue, vai-a mastigando ele. O mal, no meu caso particular, é que exagero. Empanturro-me de horizontes e de montanhas, e quase que me sinto depois uma província suplementar de Portugal. Uma província ainda mais pobre do que as outras, que apenas produz uns magros e tristes versos…


Coimbra, 15 de Outubro de 1963 – Quase a seguir um ao outro, dois fanatismos de pólos opostos a baterem-me à porta. Combati-os com igual denodo, embora o de raiz liberal arregalasse os olhos de espanto à medida que se via contrariado. Não era eu habitante da margem esquerda do rio das ideias? Que significava, pois, semelhante reacção? Isto apenas: a impossibilidade que sempre tive de aceitar como bom do lado de cá o que reprovo do lado de lá. Acredito em certos princípios, mas sem a cegueira dos iluminados. No auge da maior paixão, a lucidez corta-me as asas. E caio envergonhado dos pínacros da certeza no raso chão da dúvida. Daí a minha real incapacidade de adesão a igrejas de qualquer natureza. Saí da religiosa em que fui criado e da literária em que entrei um dia, por motivos idênticos: faltava-me o ar naqueles fechados ambientes de ortodoxia. Na altura, tentei justificar logicamente o meu procedimento. Mas as razões que se dão para certos actos é o que deles menos importa. Abandonei as duas confrarias, e nunca mais entrei em nenhuma. Isto, sim, diz tudo. Significa que o meu espírito, embora sedento de absoluto, como sempre o conheci, se recusa encontrá-lo em qualquer prisão dogmática, e porfia em descobri-lo no descampado inquieto da liberdade crítica.. .

S. Martinho de Anta, 23 de Dezembro de 1982 – Cá estou mais uma vez cingido à minha natureza profunda. Vestido como qualquer camponês e a sentir-me bem dentro desta pele terrosa, cavo o quintal, arranco silvas, podo roseiras, racho lenha. E converso com gente do meu agro que me vem visitar ou consultar, gente que nunca me leu, nem faz ideia do que é ser poeta, que fala de trivialidades e quer ouvir respostas triviais. Alimento como todo o meu ser essas conversas intermináveis, feitas de tudo e de nada, e quando elas acabam retomo a enxada de boa consciência, na paz de quem compreendeu e foi compreendido. Sabe bem compartilhar da condição comum. Lá em baixo sou uma ficção entre ficções; aqui sou uma criatura entre criaturas.

Miguel Torga, Passagem pelo Cárcere, in O Quinto Dia da Criação do Mundo, Coimbra, 1974.

5 comentários:

Jad disse...

Segredo que nunca tive coragem de revelar. Nunca fui muito "à bola" com Miguel Torga. Devia ser exactamente por amar a província, o que é diferente de se ser provinciano.

ana disse...

JAD,
:) jogo de palavras: Sofismas. Peace!

Burrice (De burro + suf. -ice)- qualidade do que é pouco inteligente, estúpido.

in Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa e da Fundação Calouste Gulbenkian, da Verbo, editado em 2001.

JAD, prezo a sua inteligência, prezo a sua sapiência e respeito-o.
Só lhe peço que não se refugie em palavras "enfiar a carapuça". E agora a brincar: não gosto de carapuços gosto de chapéus, embora use muito raramente!

Boa noite e viva o pensamento as ideias e os combates positivos.

ana disse...

Lamento que não goste porque ele tem uma grande profundidade no dizer e no olhar!

Para mim, a província dele é semelhante ao " Grande Silêncio" dos Cartuxos. Claro, numa outra perspectiva... julgo que entende o que quero dizer!

Miss Tolstoi disse...

Por acaso também não é "my cup of tea", embora reconheça que é um grande prosador.

Miss Tolstoi disse...

A propósito de provincianismo: umas palavrinhas em inglês ficam sempre bem.