Prosimetron

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terça-feira, 12 de outubro de 2010

À Sombra da Memória

"Poucas palavras têm lugar neste livro", Gonçalo M.Tavares. À Sombra da Memória regista, em prosa, algumas vivências de Eugénio de Andrade. A escolha da tela prendeu-se com uma palavra do texto: "garças".
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Pierre-Auguste Renoir, Portrait of Frederic Bazille Painting The Heron with Wings Unfurled
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Musée D'Orsay, Paris

O Ofício da Paciência
Parece que se chama Baía das Pérolas, mas não tenho a certeza. Certo, certo, era tê-la todas as manhãs diante de mim, ao pequeno –almoço. À esquerda, os barcos a caminho de Hong Kong, à direita, a longuíssima ponte desenhada a traço fino, ligando a cidade à ilha de Taipa. Não sei dizer porquê, mas a ponte era da família das garças. Tinha a mesma elegância, a mesma cor de cinza clara, era isso. Antes da ponte havia edifícios altos enfaticamente chamados arranha-céus; para lá da ponte, a mesma coisa. A cidade – estou a falar de Macau – vista de longe tem um perfil enganador. Macau é uma cidade com as tripas de fora, mas isso não se vê do jectfoil que te traz de Hong-Kong; nem quando te aproximas da fronteira, vindo da China. Mas é breve o engano, o carácter da cidade não tarda a revelar-se, os seus cheiros, a pulsação do seu olhar, o suor do seu corpo vêm ao teu encontro ao dobrar da primeira esquina. Porque na verdade estamos no Oriente – estes homens , estas mulheres têm na rua a sua casa: aqui trabalham e comem, aqui discutem e riem, aqui fazem dos seus dias o longo ofício de paciência. São muito pobres, mas não se sentem humilhados na sua pobreza. Talvez saibam que há ricos muito mais pobres que eles. Porque o que lhes sai das mãos trabalhado, em abundância de espírito – cerâmica, palha, bambu, pedra, música – tudo revela um saber delicado, subtil, superior.


Eugénio de Andrade, À sombra da Memória, Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2008, p.127 , (posfácio de Gonçalo M.Tavares)

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