Prosimetron

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sábado, 14 de agosto de 2010

A nossa vinheta


Cemitério de Badajoz, 1936

As forças franquistas tomaram Badajoz em 14 de Agosto de 1936, tendo este episódio sido um dos maiores massacres, no qual foram assassinadas entre 2000 a 4000 pessoas.
Mário Neves, então um jovem repórter «foi testemunha ocular de uma das mais horríveis chacinas da Guerra Civil Espanhola, que se verificou em Badajoz. Ficou tão perturbado com o que viu que jurou nunca mais voltar àquela cidade.» (John Blake e David Hart)


Lisboa: O Jornal, 1985
«Este livro é um desabafo e constitui um alívio para cerca de meio século de opressão da minha consciência dominada pelo constante remorso de quase ter deixado cair no esquecimento o testemunho de um dos mais terríveis acontecimentos que pude presenciar em toda a existência.» (da Introdução)

Desde dia 11 que Mário Neves se encontrava na Fronteira do Caia. Dia 15 foi a Badajoz. Eis o relato:

«Desolação e pavor
«Fronteira do Caia, 15 [de Agosto de 1936] – Sou o primeiro jornalista português a entrar em Badajoz, depois da queda da cidade em poder dos revoltosos. Acabo de presenciar um espectáculo de desolação e de pavor que não se apagará tão cedo dos meus olhos. [...]»
(Vou colocar o resto deste relato em comentário.)

Esta vinheta vai ficar apenas dois dias, hoje e amanhã. Só para não esquecer.

9 comentários:

MR disse...

Desolação e pavor

Fronteira do Caia, 15 [de Agosto de 1936] – Sou o primeiro jornalista português a entrar em Badajoz, depois da queda da cidade em poder dos revoltosos. Acabo de presenciar um espectáculo de desolação e de pavor que não se apagará tão cedo dos meus olhos.
Ontem ao fim da tarde, para os lados da cidade fronteiriça, deixou de se ouvir o canhoneio, o que nos levou ao conhecimento de que a praça caíra nas mãos dos rebeldes. Um silêncio trágico de morte, envolvia à distância o casario. Tentámos, então, baldadamente os primeiros esforços para entrar na capital estremenha. Ninguém nos queria conduzir, com receio dos legionários, que deviam estar ainda bastante excitados pela vitória.
Hoje, às duas da madrugada, com dois jornalistas franceses que aqui se encontram, Marcel Dany, da Havas, e Jacques Berthet, do Temps, fiz uma tentativa para forçar a “consigne”. Atravessámos a fronteira, conversámos com os carabineros do posto espanhol, que procuraram dissuadir-nos do nosso propósito. Numerosos falangistas aguardavam também com os seus carros a hora propícia para entrar na cidade. Um moço entusiasta da causa nacionalista prontificou-se a conduzir-nos, mas o chefe proibiu-lho terminantemente.
Telefonámos então para todos os hotéis de Badajoz, na esperança de encontrarmos alguns dos nossos camaradas que, vindos de Sevilha, ali tivessem entrado com as colunas dos rebeldes. A cidade está, de facto, tomada, mas nenhum jornalista estrangeiro conseguiu ainda autorização para transpor as suas velhas muralhas.
Põem-nos em comunicação com a Comandancia Militar, que, ao cabo de muitas solicitações, nos concede a desejada autorização.
Eram três horas da manhã. Tínhamos autorização para seguir, mas não dispúnhamos de automóvel que nos levasse. A noite, apesar de estrelada, estava escura como breu. Tentar a viagem a pé era uma temeridade inútil. Por isso resolvemos aguardar até de manhã.
Eram nove e meia quando conseguimos, finalmente, tomar lugar no primeiro automóvel de falangistas que ia partir para a cidade.
À entrada, na Puerta de Palma, os marroquinos estavam de sentinela. Servem-nos de salvo-conduto os falangistas que nos acompanham.
Dirijgimo-nos imediatamente à Comandancia Milita, em cujo largo fronteiro se nota grande movimento. Enervada por alguns dias de sucessivos bombardeamentos, a população saiu para a rua. Vêem-se bandeiras brancas em quase todas as janelas. Passam numerosas mulheres vestidas de luto. As ruas apresentam um aspecto desolador, cheias de destroços do bombardeamento. Os camiões das colunas rebeldes impedem o trânsito. Vêm carregados de material de guerra e de engenharia, para abrir trincheiras, construir pontes, reparar estradas. Junto das paredes da Comandancia, a rua está salpicada de sangue.
Conseguimos falar com o chefe falangista local, Agustin Caranda, que nos deu todas as facilidades para circular na cidade, pois nota-se ainda certa confusão e há que contar sempre com uma surpresa.
Percorremos a cidade rapidamente. Os estragos causados pelo bombardeamento são importantes. Verificámos, no entanto, que não houve muitos incêndios. […]
Dirigimo-nos em seguida à praça de touros, onde se fazia a concentração dos camiões das milícias populares. Muitos deles estão destruídos. […]
Este local foi bombardeado várias vezes. Na arena vêem-se ainda alguns cadáveres, o que dá à praça um aspecto macabro de teatro anatómico. […]
Estamos agora na Calle Ramon Albarran, que foi uma das mais sacrificadas pelo bombardeamento aéreo. O edifício onde estava instalado o “Centro Obrero” é agora o quartel da “Falanje Española”. Jovens falangistas armados guardam a entrada.

(cont. no comentário seguinte)

MR disse...

(Cont. do anterior)

Vamos andando até ao bairro de Santo André, aglomerado de casas pobres, onde vivia gente humilde, e que foi dos que mais sofreram com os ataques aéreos. As paredes dalgumas habitações ainda se conservam de pé, mas os interiores ficaram quase completamente destruídos.
Por entre as ruínas, removendo Himalaias de destroços, pobres mulheres procuram inutilmente os seus haveres, gemendo e chorando a sua desgraça.
- Vejam! Vejam em que estado ficou a nossa casa!
Corta o coração ouvir esta gente humilde, que se lamenta, com o olhar ainda apavorado da tragédia que acaba de viver.
Chegamos, finalmente, à “Puerta de la Trinidad”, um dos pontos por onde entraram ontem os legionários, numa arrancada heróica, que ficará memorável nos anais militares do Tercio.
As muralhas estão todas protegidas por sacos de areia, junto dos quais se vêem centenas de cápsulas de balas que se dispararam, o que demonstra que a resistência esteve à altura do ataque, em valentia e tenacidade. Alguns cadáveres ainda não foram retirados.
Sucedeu o mesmo na Calle de San Juan, próximo da qual foram passados pelas armas os milicianos que caíram em poder dos rebeldes.
A catedral, em cuja torre nos disseram ter sido colocadas metralhadoras, está bastante danificada. Na nave central, dois cadáveres aguardam ainda sepultura.
Contaram-nos que, há três dias, quando a cidade começou a ser bombardeada, uma parte da população se refugiou ali.
No palácio episcopal, onde estava instalada a Federação Socialista, os estragos são também consideráveis. Outros edifícios sofreram igualmente com o bombardeamento, que durante três dias bateu sem tréguas a cidade, abreviando a sua resistência inútil.
Na Comandancia Militar, somos recebidos amavelmente por um capitão do Tercio, que nos descreve o ataque à cidade. Três colunas tomaram parte nele: uma de “regulares” marroquinos […], outra de legionários […], e ainda outra de “regulares”. […].
Pouco antes do meio-dia, quando nos encontrávamos fora das portas da cidade, próximo dum riacho que estava ainda juncado de cadáveres, ouviu-se o roncar dos aviões, a grande altura, sobre a cidade. Os legionários e os regulares, que ocupavam vários pontos fora da cidade, reuniram-se à pressa, a um toque vibrante de clarim.
Dali a pouco, os aviões passavam sobre nós, muito altos no céu azul, espalhando o terror entre a população. Eram aviões governamentais que vinham de Madrid e que deixaram cair algumas bombas, sem resultado, porque nenhuma delas acertou no alvo, perdendo-se nos campos próximos, depois de levantarem “geisers” de terra e de metralha.
Estávamos de novo na Comandancia, onde conseguimos chegar até junto do tenente-coronel Yagüe. […]
Recebe-nos de pé e declara-nos logo que se encontra muito satisfeito com o resultado que as forças do seu comando conseguiram ontem.
E acrescentou:
- A acção do exército sublevado que ontem se desenvolveu às portas de Badajoz foi a mais importante desde que rebentou a revolução.
Perguntamos-lhe se havia muitos prisioneiros. Respondeu-nos que sim e informou-nos que haviam sido apreendidas 3000 espingardas, algumas metralhadoras e uma pequena bateria de canhões de infantaria.
- E fuzilamentos…? – arriscámos nós. Há quem fale em dois mil…
O comandante Yagüe olha para nós surpreendido com a pergunta e declara:
- Não devem ser tantos…
- Vão ficar aqui muito tempo?
- O meu desejo é partir logo que possa para Madrid.
- A campanha será longa?
Com um sorriso, que fecha as suas breves declarações:
- Não eles correm muito…
Mais tarde, por volta das 13 e 30, os sinos da catedral repicaram e ouviu-se o silvo agudo duma sereia. Eram de novo aviões governamentais que se aproximavam, o que obrigou a população a esconder-se nos abrigos. Estes, porém, cruzaram o céu serenamente e afastaram-se sem deixar cair nenhuma bomba.
Mas os “raids” não cessam. Às 15 e 30, novos aviões de Madrid vuaram novamente sobre a cidade voltando a perder-se ao longe, sem dar mais sinal de si.
Eram 16 e 30 quando consegui chegar ao Caia. […]
(p. 33-37)

MÁRIO NEVES

ana disse...

Interessante.

Jad disse...

É preciso não esquecer para não voltar a acontecer

APS disse...

Creio que foi importante este seu longo trabalho de trancrição - eu, pelo menos, agradeço-lho.
Quanto a Badajoz, que conheci, apenas, recentemente, detestei. Embora tenha uma perspectiva de modernidade e futuro à espanhola que mete, por exemplo,V. Real de Sto. António num bolso...
Depois, e regressando ao texto, há o testemunho dos alentejanos, do lado de cá, que também é sinistro.
Depois de Guernica,deve ter sido a maior carnificina da Guerra Civil Espanhola.

MR disse...

Há anos a RTP fez uma excelente série sobre este período, de que agora não recordo o título, e que mostrava muito bem como se viveu a guerra do lado de cá da fronteira. Imensos espanhóis que tinham fugido para o lado de cá, foram entregues aos franquistas para serem mortos na praça de touros. E contava-se que lhes deitavam gasolina, assim que punham o pé na fronteira, e os queimavam. E que se sentia o cheiro do lado de cá. Coisas horríveis.

MR disse...

Obrigada!

Miss Tolstoi disse...

Dizer que é "interessante" este inferno na terra... Valha-me Nossa Senhora das Causas Perdidas!
Também vi essa série - "A Raia dos Medos". Muito boa, das melhores que a televisão portuguesa fez.

Miss Tolstoi disse...

Não vi esta vinheta posta, mas parabéns pela escolha.