Prosimetron

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sexta-feira, 4 de julho de 2008

Frederico Lourenço: pôr-me a nu

A propósito das declarações de Manuela Ferreira Leite, na TVI, no dia 2 de Julho de 2008, recordo a corajosa crónica de Frederico Lourenço:

"Pôr-me a nu
A correspondência comovente que tenho recebido de leitores anónimos a propósito do meu livro, A Máquina do Arcanjo, tem-me levado a reflectir sobre alguns aspectos curiosos da nossa lusitana Arcádia no que toca a atitudes convindas face à homossexualidade masculina. Tanto mais que estes leitores desconhecidos, na sua vontade de exprimirem reconhecimento pelo facto de a minha escrita dar voz aos seus sentimentos e desgostos de amor, contrastam, no seu posicionamento em relação ao tema do carisma amoroso exercido no homem pelo próprio homem, com muitos amigos e conhecidos meus, intelectuais e artistas que comigo partilham a vulnerabilidade ao referido carisma; amigos esses que me têm questionado sobre a proficuidade (ou mesmo elementar prudência) de eu estar a dar visibilidade àquilo que, para comodidade (não direi "bem") de todos, mais valia ficar invisível.
Parece que se estabeleceu uma espécie de dogma, no actual discurso português sobre a homossexualidade, segundo o qual apenas duas atitudes públicas são admissíveis: ou vociferar a reivindicação do casamento e da adopção gay, ou então optar, pura e simplesmente, pelo silêncio. Anglófilo, como é meu apanágio desde sempre, sinto uma certa nostalgia da "naturalidade" com que o tema é abordado na imprensa britânica inteligente: refiro-me ao Observer, ao Independent e - surprise! - ao Financial Times. Neste último jornal, reduto (pensar-se-ia) de atitudes empedernidas da direita mais conservadora, qual não é o nosso lusitano espanto ao vermos jornalistas como Rahul Jacob referirem-se no mais natural dos tons à sua não-heterossexualidade, já para não falar do Spectator, outra publicação conservadora, onde pontifica Philip Hensher, em relação ao qual todos sabemos, pelas leituras das suas crónicas, que ele (por exemplo) prefere cerveja a vinho, gosta de pintura setecentista e vive com um simpático namorado francês chamado Laurent.
Pela minha parte, não me sinto bem com nenhum dos extremos actualmente admissíveis (confortáveis?) em Portugal. Sem querer ofender nem negar os direitos de ninguém, tenho de reconhecer que a minha educação na fé católica (em que creio mas não pratico) dificulta, no íntimo do meu espírito, a adesão sincera à reivindicação da família gay legalmente constituída (friso que se trata de uma posição absolutamente pessoal, de consciência religiosa: não quero com ela pôr em causa as aspirações, muito menos a felicidade, de homens e mulheres que desejam legitimamente um enquadramento legal para uniões com pessoas do mesmo sexo, quando mais não seja para efeitos de doação testamentária de património). Por outro lado, a manutenção do histórico silêncio, pactuar com a tão cómoda invisibilidade, também me causa enormes problemas de consciência. Há amigos que me vêm dizer que a pressão de "assumir", de sair do armário, já é uma forma de discriminação homofóbica, já que ninguém pede a heterossexuais que se assumam como tal. A minha experiência pessoal pelo contrário, tem-me ensinado que assumir é pelo menos em certos meios, uma forma de manietar a homofobia.
Não querendo transpor a minha vivência universitária para outros meios, decerto mais hostis, posso dizer, não obstante, que a clarificação pública da minha sexualidade trazida, a partir de 2002, pela publicação dos meus livros veio dar-me uma imagem extremamente positiva da minha faculdade, que, já desde os meus tempos de estudante, eu imaginava muito mais homofóbica. Colegas que eu via facilmente a cortar relações comigo se "soubessem" fizeram, para meu espanto, um esforço pronunciado para me mostrarem abertura e simpatia. Pessoas que eu imaginava a evitar-me doravante e a virar-me a cara nos corredores tornaram-se minhas amigas. Os dois catedráticos, já de idade mais avançada, os "papões" cuja reacção eu mais temia, passaram a desempenhar na minha vida académica um papel protector e paternal. Sei que não posso transpor o ambiente da Faculdade de Letras para uma sucursal da Caixa Geral de Depósitos ou para uma esquadra da GNR, mas quero afirmar a despeito disso que, para além do efeito positivo que a minha exposição pública (tão criticada por amigos homossexuais...) parece ter nos leitores que me escrevem, o efeito positivo em mim próprio, na minha maneira de me relacionar com o mundo profissional no qual estou inserido, não podia ter sido melhor.
Aos amigos que questionam a proficuidade de me "expor"; respondo o seguinte: não deverá ser-vos assacada a vocês, homossexuais que nunca dão nas vistas e homens normalíssimos na vossa vida normalíssima, a responsabilidade por muitos dos equívocos que alimentam a homofobia?"
Frederico Lourenço
In Valsas nobres e sentimentais : crónicas, Lisboa, Cotovia, 2007, pp. 15o-153

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