Prosimetron

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sábado, 4 de dezembro de 2010

Livros de cozinha - 37


Este mês escolhi, para apresentar aqui no blogue, algumas receitas para confeccionar o peru natalício. Vou começar com uma de Alfredo Saramago, retirada do seu livro

2.ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007

PERU RECHEADO À MODA DO AVÔ DA GRANJA

«É uma receita de família que faz parte da tradição da casa.
«É servida no dia de Natal, ao jantar, e considerada como um corolário feliz e opulento a um ano de reconfortáveis refeições. O meu Avô, sem disso se aperceber, tinha-lhe dado ao longo dos anos uma simbologia quase ritual, como se se tratasse de um agradecimento por mais um ano de fartura, suficiente para sustento e apetites. Vivíamos no campo, e na propriedade produzia-se quase tudo o que comíamos. Este jantar, e especialmente esta receita, revestia um carácter de celebração e de reconhecimento por essa situação de auto-suficiência.

Receita
«Um mês e meio antes do natal, os perus escolhidos para essa data eram retirados à companhia dos irmãos, que andavam todo o ano livremente pelo campo, e metidos numa capoeira juntamente com um pato-ganso e uma galinha. A única alimentação a que ficavam sujeitos era a bolota e a água.
«Quinze dias antes do natal, o peru escolhido para essa receita, o ganso e a galinha, começavam a ser alimentados à mão, e querendo ou não, deitavam-lhe pelas goelas abaixo 15 bolotas ao peru, 10 ao ganso e 5 à galinha. Diariamente.
«As três aves eram mortas na véspera de Natal e ficavam toda a noite mergulhadas num alguidar de barro, com água e vários limões cortados aos quartos.
«De manhã, retiravam-se da água e iniciava-se a preparação da receita, começando por desossar o peru, o ganso e a galinha. Era feita uma incisão nas costas de cada ave e depois, com as mãos e com muito cuidado ia-se separando a carne dos ossos do peito e das pernas, deixando-se os ossos das asas. depois de desossados, temperavam-se com sal e pimenta, punha-se um ramo de alecrim em cima de cada ave e embrulhavam-se em panos de linho.
«A seguir ao almoço a execução da receita continuava, pisando-se num almofariz vários dentes de alho com sal. Terminado o piso adicionavam-se consoante a quantidade, algumas colheres de sopa de azeite. A seguir barravam-se as três aves, por dentro e por fora. Colocavam-se em cima de uma tábua, cobriam-se e repousavam o tempo de se arranjar e limpar um perdiz e um tordo. Com uma incisão nas costas, desossavam-se também estas duas aves, retirando os ossos do peito e pernas e deixando os das asas.
«Barravam-se com a pasta de alho e azeite e colocava-se em cima um ramo pequeno de alecrim. Ao tordo, cortavam-se as assa e metia-se dentro do bucho da perdiz, atando com um fio, se necessário, para que a perdiz retomasse a sua forma primitiva. Com a perdiz já recheada com o tordo, cortavam-se-lhe as asas e recheava-se a galinha, atando e cosendo com um fio, se as incisões da operação de desossamento tivessem excessivamente alargado. Cortando as asas à galinha, recheava-se com ela o ganso, procedendo da mesma forma em relação à incisão das costas, que deveria ser bem cosida. Depois do ganso cheio, cortavam-se-lhe as asas e enchia-se finalmente o peru, procedendo de igual forma para lhe coser a pele e retomar o aspecto como se não tivesse sido desossado.
«O peru era posto num grande tabuleiro e barrava-se toda a pele com três colheres de sopa de banha de porco. No fundo do tabuleiro deitava-se meio litro de água e meio litro de vinho branco. O forno era pouco acima do mínimo e o peru assim recheado demorava cerca de três horas e meia a assar. Durante o tempo de forno era regado várias vezes com o molho do fundo do tabuleiro. Um quarto de hora antes de terminar o tempo, o peru era retirado do forno, posto a arrefecer e salpicava-se com gotas de água fria. Punha-se o forno no máximo e metia-se novamente dentro, para que a pele se destacasse da carne e ficasse alourada e quebradiça.
«Para se verificar se a assadura estava no fim, espetava-se uma grande agulha e se ela não trouxesse gotas de líquido das carnes e se no orifício feito pela agulha também não aparecessem, a ve estava pronta a ser servida.
«A execução da receita é simples, sem temperos em excesso e grandes elaborações, pondo em evidência o sabor da carne de diferentes aves, realçada só por um aroma de alecrim, que casa bem com as carnes engordadas a bolota.
«A preparação é mais complicada para quem não está habituado a desossar uma ave, mas com paciência e algum engenho a tarefa cumpre-se, porque é a partir dela que a receita é notável. Cortar largas e grossas fatias de carne tenra, cheirosa, de várias colorações e sabores, do peito às costas, sem encontrar osso, faz-nos cair numa volúpia indizível, num prazer que vai muito além da alegria prometida ao palato. Para não excluir ninguém dessa sensação, o peru era posto inteiro no meio da mesa e cada um dos presentes levantava-se e ia cortar a fatia para o seu próprio prato. Era no corte que se iniciava o êxtase e na boca, a reunião providencial das diversas e delicadas carnes, consumava o prazer supremo de comer.
«Quando um prato é raro e traz com ele uma aura de encantamento, ninguém tem o direito de se tornar celebrante solitário, servindo os outros, roubando gestos que completam a cerimónia na qual cada conviva deverá ser oficiante.
«Tal como os ingleses, que servem o vinho do Porto com a reverência de uma bebida sagrada, rodando a garrafa no sentido dos ponteiros do relógio, para a frente de cada pessoa presente, para ser ela a retirar a tampa da garrafa de cristal, servir-se, tapar de novo e passar ao acompanhante do lado, também o meu Avô entendia que a sacralização da refeição começava no corte e no gesto de cada um servir-se a si próprio.
«Só as crianças eram servidas pelo meu Avô e quando chegava a altura de alguma ser convidada a servir-se sozinha, tal como em qualquer cerimónia iniciática. esse facto constituía um rito de passagem, considerando que se tinha chegado à adolescência. Tinha doze anos, quando me foi dado esse reconhecimento.» (p. 151-154)

Deve ser uma delícia. Desde que a li que espero um dia aventurar-me. Mas ainda não vai ser este ano!
Se alguém experimentar, não se esqueça de nos convidar. Parece-me pouco três horas e meia para assar um peru tão (divinamente) recheado. Mas, este ano, vou tirar o peru para fora, salpicá-lo com água fria, etc., como sugere a receita.


Peter Wenceslaus - A turkey in a landscape

2 comentários:

APS disse...

Um achado, este texto, MR. E as ilustrações, também. Obrigado.

MR disse...

Só espero um dia ter «engenho e arte» para meter mãos à obra.