Prosimetron

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sábado, 27 de fevereiro de 2010

A.S.: Escolhas Pessoais XIX

Cristovam Pavia



São alguns os poetas portugueses conhecidos e lembrados apenas por um poema. Por exemplo, João Roiz de Castel-Branco e a sua cantiga “Partindo-se”. Muitos, pelo único livro que publicaram: Cesário pelo “Livro de Cesário Verde” ou Camilo Pessanha com a sua “Clepsidra”. Quase sempre a prolixidade, em poesia, não rima com eternidade. Esquecido ou muito pouco lembrado está Gomes Leal que, no entanto, abriu caminho a Cesário Verde… Poetas há que tiveram sorte, outros má sina. Cristovam Pavia (1933-1968) foi um destes últimos. De seu nome completo, Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho, era filho do poeta presencista Francisco Bugalho, e, pouco depois de completar 35 anos, interrompeu a sua própria vida cruzando o corpo ainda jovem com um comboio, ali para as bandas de Belém. Tinha começado a escrever e publicar poesia precocemente, em revistas: “Anteu”, “Árvore” e “Távola Redonda”. Em 1959 foi editado o seu primeiro e único livro, “35 Poemas”, na Moraes. Mas era um homem atormentado, com sentimentos de culpa e profunda religiosidade.

POEMA

Súbitos mergulhadores descendo nas águas inimigas
Com os olhos fitos e os peitos esmagados,
Descendo devagar, ao som lento de segundos vertiginosos como séculos
Todos nós vos acompanhamos e juntamos todas as nossas forças na mesma meditação.
Aqui, da terra firme,
Entre nuvens e terra,
Entre o suor e o orvalho,
Esperamos o termo com todas as nossas forças.
E sabereis a nossa mensagem:
Só há saída pelo fundo.

O seu desajustamento com o mundo não o impediu de ter cultivado amigas relações com José Régio e Casais Monteiro, bem como com poetas da sua idade ou geração: Pedro Tamen e António Osório. Mas a sua hipersensibilidade levaram-no por duas vezes até Heidelberga onde inicia uma psicoterapia e, ao mesmo tempo, trabalhará como pedreiro na construção civil.
Os poemas iniciais de Cristovam Pavia são, muitas vezes, voltados para a infância como numa tentativa de regresso a um paraíso perdido. Os finais, de extrema simplicidade, numa linguagem clara, mas quase sempre de tom elegíaco e grande carga dramática, falam de sentimentos e da vida de todos os dias. O poema que a seguir se transcreve, e que fez à morte do seu cão, é um bom exemplo disso – e, do meu ponto de vista, uma das mais belas elegias da poesia portuguesa do século XX.


Pintura de Mário Botas

AO MEU CÃO

Deixei-te só, à hora de morrer.
Não percebi o desabrigado apelo dos teus olhos
Humaníssimos, suaves, sábios, cheios de aceitação
De tudo… e apesar disso, sem pedido, tentando
Insinuar que eu ficasse perto,
Que, se me fosse, a mesma era a tua gratidão.
Não percebi a evidência de que ias morrer
E gostavas da minha companhia por uma noite,
Que te seria tão doce a minha simples presença
Só umas horas, poucas,
Não percebi, por minha grosseira incompreensão,
Não percebi, por tua mansidão e humildade,
Que já tinhas perdoado tudo à vida
E começavas a debater-te na maior angústia, a debater-te com a morte.
E deixei-te só, à beira da agonia, tão aflito, tão só e sossegado.

P. S.: à MR, pela paciência, disponibilidade, generosidade e incentivo. Afectuosamente.

Post de Alberto Soares

4 comentários:

MR disse...

Gosto de Cristóvão Pavia e dos poemas que escolheu. Havia aspectos da sua biografia que desconhecia. Obrigada!

MR disse...

Sempre ao dispor, é um prazer. Para já não falar que é uma mais valia para o Prosimetron tê-lo como colaborador e comentador.

LUIS BARATA disse...

Sempre achei que este poeta torturado tinha escolhido um dos mais belos pseudónimos da nossa poesia,poeta que escreveu também um dos mais belos poemas de língua portuguesa sobre o melhor amigo do homem.

ana disse...

Belo post!