Prosimetron

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sábado, 6 de agosto de 2011

O segredo de um martelo

Confesso que não gosto de tocar nos assuntos que os meus colegas trabalham. Mas, por vezes, a nossa imaginação é estimulada e começamos a navegar em torno de um tema, que não é nosso. Confessado o pecado, resta-me pedir clemência.
A Ana colocou um quadro de Francesco d'Este (c. 1430-c.1475) atribuído a Rogier van der Weyden. Acredita-se que tenha sido pintado circa 1460, data em que o mesmo pintor retratou Filipe-o-Bom e Carlos-o-Temerário.
A Ana estava interessada nas jóias: os dois anéis que o retratado tem. Um colocado no dedo (com pedra azul) e outro (com pedra vermelha) que apresenta, com a mão direita, em conjunto com um martelo.


Li o comentário que Luís Barata colocou. E partilhando das mesmas dúvidas.... lembrei-me de dois momentos em que fui confrontado com um martelo e que achei estranha a sua presença. 
O primeiro foi numa exposição (?), num livro (?), já não sei... mas lembro-me bem. Era um martelo de prata que tinha como explicação qualquer coisa como... martelo com que se verificou a morte do papa... Fiquei então a saber que o camarlengo (julgo que não estou enganado, que é ele) tem de dar uma pancada, com um martelo de prata, na fronte do pontífice, para comprovar que está morto.
Poderia ser, assim, o martelo com que o Camareiro de Filipe-o-Bom, cargo que Francesco d'Este também desempenhou, tinha comprovado a morte do seu senhor... apresentava-se o anel fora do dedo (símbolo de que o "poder" não está a ser exercido) e o martelo que comprovava a morte. Poderia ser uma tese, mas que esbarra com a data que por tradição se atribui ao quadro: 1460. Filipe-o-Bom morre em 1467 e o artista do quadro, se este for Rogier van der Weyden, morre em 1464. 

Mas, escrevi que havia ainda um outro momento em que tinha sido igualmente surpreendido por um martelo. Foi quando procurava símbolos do poder para o século XV e XVI, para um trabalho que nunca escrevi. 
Existe, na Bélgica, em Bruxelas, na Bibliothéque Royal, um manuscrito iluminado, denominado Chroniques de Hainaut, representado no primeiro fólio uma cena cortesã, em que um cronista apresenta o trabalho ao seu senhor, que, neste caso, é Filipe-o-Bom. Estamos em 1448. Até aqui nada de extraordinário, a não ser que Filipe-o-Bom se apresenta segurando não um bastão mas sim um martelo (?) semelhante (?) - não conseguimos uma boa ampliação - na mão direita. Um martelo como símbolo de poder? 


Assim, o martelo e o anel que Francesco d'Este apresenta na mão podem muito bem ser os símbolos do poder do duque da Borgonha. Os símbolos do senhor de quem tinha um cargo palatino.











Este post é dedicado à Ana, ao Luís e ao JP que o vai rebater, provando que o martelo não é um martelo...

p.s. [8.8.2011]: será que o martelo está, na mão do duque, com outra função?, por exemplo para dar uma "pancada" no livro, como acto de recebimento...

9 comentários:

ana disse...

Jad,
Muito obrigada pela explicação. Adorei este post.
A paixão leva-nos a pensar e a interrogarmo-nos, só assim é que a ciência avança.
Realmente as jóias interessam-me e não sou "expert" na matéria. Julgo no entanto, que os especialistas existem para ajudar, e penso também que devem estar abertos a outras análises para as rebaterem.

Muito obrigada! Não sabia que verificavam a morte de um Papa com um martelo, sempre pensei que era com um espelho. Porque é que não utilizariam o espelho?
Era por ser considerado magia, ou algo ligado ao profano?
Partilhei das dúvidas do Luís que agora estão sanadas.

Grata!

MR disse...

Muito interessantes estas novas hipóteses.

LUIS BARATA disse...

As dúvidas estão longe de estarem sanada, cara Ana :). Nem o grande Kantorowicz foi peremptório em relação a esta tela.
O Jad avançou com uma hipótese, apenas isso. Hipótese essa que está certa no essencial: o martelo como símbolo de poder, o que, no caso, pode "bater certo" com o que sabemos da vida de Francesco d' Este: filho ilegítimo, foi criado na corte de Borgonha e foi camareiro do Temerário. Depois, foi outras coisas, como embaixador ocasional da Corte de Borgonha em Roma, o que não o habilitaria nunca a "martelar" o Papa :).
Quanto ao anel, há um pormenor que ainda mais intrigante esta tela : só foi descoberto em 1934 aquando de um restauro. Tinha sido tapado...

LUIS BARATA disse...

" símbolo de poder", no caso um cargo palatino como parece ser a hipótese mais provável.
Digam lá que o " O Martelo na Arte " não dava uma bela tese!

MR disse...

E já agora, Luís: já tem o catálogo de A espada? Outro símbolo de poder.

LUIS BARATA disse...

Estava prometido, mas ainda não me chegou às mãos :)

Jad disse...

Desconhecia e desconheço toda a história física do quadro. Ontem quando cheguei a casa, já tarde, e depois do momento em que "fiz leilão de mim"... passei os olhos pelo nosso blog e olhando o quadro da Ana, relembrei o martelo.
Só coloquei dúvidas. Aguardo o comentário de JP.
A primeira: será que os outros Senhores também viam a sua morte confirmada com um martelo?
Na simbologia do poder existe muito de mimetismo. Sendo essa a prática desde a alta Idade Média, na corte de Roma, parece-me natural.
A outra dúvida vem, mais uma vez, de um comentário do Luís. (Como eu gosto de dialogar com questões inteligentes). O desaparecimento [temporário] do anel. Mais uma vez a imaginação (a minha) recorre ao que lhe resta de imagens no seu acervo (em farrapos). Existe um quadro da mesma época e na mesma corte em que o homem representado segura, na mão direita, uma seta. Será que se construiu uma lenda de ligação entre os vários quadros (símbolos da paixão, por exemplo) e o anel não encaixava na história e por isso desapareceu???
A terceira dúvida era anterior. Radica no martelo como símbolo de poder. Não preciso de lembrar os diferentes usos do malhete (e todo o bom juiz tem um como símbolo). Este martelo em concreto, com as duas “faces” ( não sei o nome e lembrei-me de Janus) diferentes. Um símbolo de poder e uma arma. Um golpe dado com a parte de arrancar os pregos dava morte pela certa.
E já agora: Bom dia!

ana disse...

Quanto à simbologia do martelo como apanágio da justiça, isso foi algo que me veio à cabeça.
Como arma também, imaginei que se o Papa estava ou não morto com a pancadinha era fácil de ir desta para melhor! :)))

Quanto ao desaparecimento do anel, é de facto deveras intrigante!
As cores das pedras poderã ajudar, não?

Nunca pensei que um simples quadro que me intrigou desse um diálogo tão profícuo.

Luís, aguardam-se novas teorias.

LUIS BARATA disse...

Jad: Nunca dei conta de que o ritual vaticano da "martelada papal" fosse empregue em senhores temporais mas é questão de averiguar.

Ana: Como vê, não é nada " um simples quadro " até porque como sabemos estes retratos estavam carregados de simbolismo.