Ravel, um livro maravilhoso que terminei há alguns dias e de que transcrevo uns excertos, narra os últimos dez anos da vida do compositor que faria hoje 134 anos.
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«As férias acabaram. Agora está sentado ao piano, em sua casa. Com uma partitura à sua frente, cigarro nos lábios e, como sempre, impecavelmente penteado. Por baixo do roupão de bandas claras e bolso a condizer, traz uma camisa de riscas cinzentas e uma gravata em tons de bronze. Em posição de acorde, a mão esquerda está sobre as teclas do piano enquanto a direita, exibindo uma lapiseira de metal presa entre o indicador e o dedo grande, anota na partitura o que a esquerda acaba de criar. […]
«E a seguir, como acontece sempre que está só, faz a sua refeição virado para a parede, na mesa recuada. Ao devorar a carne, a dentadura faz um ruído de castanholas ou de metralhadora que se repercute na sala apertada. Come e vai reflectindo no que fez. Sempre gostou de autómatos e de máquinas, de visitar fábricas, de paisagens industriais, lembra-se do que viu na Bélgica e na Renânia quando passou por lá num iate de rio há mais de vinte anos, de cidades eriçadas de chaminés que expeliam chamas e fumos vermelhos e azulados, de castelos de fundições, de catedrais incandescentes, de sinfonias de correias, de silvos e sons de martelos, sob um céu escarlate.
«[…] É verdade que existia, por essa altura, uma fábrica que Ravel apreciava especialmente e que ficava junto à ponte de Rueil, a caminho de Vésinet, a fábrica dava-lhe ideias. É isso: está em vias de compor qualquer coisa que se inspira no trabalho em cadeia.
«Em cadeia e repetidamente, a composição é acabada em Outubro […]. Tem plena consciência do que fez, mas não existe estrutura a bem dizer, nem desenvolvimento, nem modelação, só ritmo e arranjos de orquestra. […]
«Mas apesar de ele sentir por essa obra um certo desprezo, não quer dizer que se deva encará-la de ânimo leve. E é preciso que o mundo compreenda também que não se pode divertir à custa do seu andamento. Quando Toscanini vai dirigi-la à sua maneira, duas vezes mais rápido e accelerando, Ravel vai ter com ele, bastante frio, depois do concerto. Não foi com o meu andamento que o senhor tocou o Boléro, fez-lhe ele notar. Toscanini inclina-se para Ravel, tornando ainda mais comprido o rosto e enrugando ainda mais o frontão que lhe faz a vez de testa. Quando toco com o seu andamento, diz, não consigo retirar-lhe o mínimo efeito. Pois bem, replica Ravel, deixe de tocá-lo. O senhor não conhece nada da sua música, há um frémito nos bigodes de Toscanini, foi a melhor forma de o tornar aceitável. Ao voltar a casa, sem dizer nada a ninguém, Ravel escreve a Toscanini. Não se sabe o que ele lhe disse nessa carta.»
Jean Echenoz – Ravel / trad. do francês por Armando Silva Carvalho. Lisboa: Sextante, 2007, p. 62-65
€13,00
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«As férias acabaram. Agora está sentado ao piano, em sua casa. Com uma partitura à sua frente, cigarro nos lábios e, como sempre, impecavelmente penteado. Por baixo do roupão de bandas claras e bolso a condizer, traz uma camisa de riscas cinzentas e uma gravata em tons de bronze. Em posição de acorde, a mão esquerda está sobre as teclas do piano enquanto a direita, exibindo uma lapiseira de metal presa entre o indicador e o dedo grande, anota na partitura o que a esquerda acaba de criar. […]
«E a seguir, como acontece sempre que está só, faz a sua refeição virado para a parede, na mesa recuada. Ao devorar a carne, a dentadura faz um ruído de castanholas ou de metralhadora que se repercute na sala apertada. Come e vai reflectindo no que fez. Sempre gostou de autómatos e de máquinas, de visitar fábricas, de paisagens industriais, lembra-se do que viu na Bélgica e na Renânia quando passou por lá num iate de rio há mais de vinte anos, de cidades eriçadas de chaminés que expeliam chamas e fumos vermelhos e azulados, de castelos de fundições, de catedrais incandescentes, de sinfonias de correias, de silvos e sons de martelos, sob um céu escarlate.
«[…] É verdade que existia, por essa altura, uma fábrica que Ravel apreciava especialmente e que ficava junto à ponte de Rueil, a caminho de Vésinet, a fábrica dava-lhe ideias. É isso: está em vias de compor qualquer coisa que se inspira no trabalho em cadeia.
«Em cadeia e repetidamente, a composição é acabada em Outubro […]. Tem plena consciência do que fez, mas não existe estrutura a bem dizer, nem desenvolvimento, nem modelação, só ritmo e arranjos de orquestra. […]
«Mas apesar de ele sentir por essa obra um certo desprezo, não quer dizer que se deva encará-la de ânimo leve. E é preciso que o mundo compreenda também que não se pode divertir à custa do seu andamento. Quando Toscanini vai dirigi-la à sua maneira, duas vezes mais rápido e accelerando, Ravel vai ter com ele, bastante frio, depois do concerto. Não foi com o meu andamento que o senhor tocou o Boléro, fez-lhe ele notar. Toscanini inclina-se para Ravel, tornando ainda mais comprido o rosto e enrugando ainda mais o frontão que lhe faz a vez de testa. Quando toco com o seu andamento, diz, não consigo retirar-lhe o mínimo efeito. Pois bem, replica Ravel, deixe de tocá-lo. O senhor não conhece nada da sua música, há um frémito nos bigodes de Toscanini, foi a melhor forma de o tornar aceitável. Ao voltar a casa, sem dizer nada a ninguém, Ravel escreve a Toscanini. Não se sabe o que ele lhe disse nessa carta.»
Jean Echenoz – Ravel / trad. do francês por Armando Silva Carvalho. Lisboa: Sextante, 2007, p. 62-65
€13,00
1 comentário:
Deve ser interessante!
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