Prosimetron

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sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Os meus poemas - 35

CÂNTICO NEGRO

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com o s olhos doces
Estendendo-me os braços e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há nos meus olhos ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Porque me repetis: "vem por aqui"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como,pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossa veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias,tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a como um facho, a arder na noite escura,
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah! que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É o átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou, Não sei para onde vou,
Sei que não vou por aí!

José Régio
(1901 -1969)

Finis laus deo .Com este poema termino esta série de "Os meus poemas". Há muitos mais. E muitos mais poetas. É inesgotável a fonte da poesia.

5 comentários:

Anónimo disse...

É muito belo este poema de José Régio. Que pena o "finis laus deo".
Parabéns pelos "Os meus poemas".
A.R.

Anónimo disse...

Também gosto deste poema de José Régio.
Depois de umas férias, ficamos à espera de uma 2.ª série...
M.

João Soares disse...

Também é um dos poemas da minha vida -- subscrevo as palavras de M., ficamos à espera da 2ª série!

Miss Tolstoi disse...

Idem, idem.

LUIS BARATA disse...

Venha a segunda série, talvez até enriquecida com poetas sul-americanos...